Café Beira Gare (Rossio, Lisboa)

O Café Beira Gare, que dobra a esquina da Praça Dom João da Câmara e a Rua 1º de Dezembro, vulgo "mesmo em frente à estação de comboios do Rossio", em Lisboa, é o típico tasco de passagem rápida, um supra-sumo da comida frita. Já o conheço há muitos anos. Não é novidade para ninguém. Mas acho que merecia duas ou três linhas.

Um paraíso de luz e gordura
Em contraste com a fachada  neo-manuelina da Estação do Rossio, com os seus apontamentos quasi-barrocos à volta das caracteristícas janelas arredondadas, a comida do Beira Gare não tem nada de barroco. É comida directa e sem contemplações. Frita e mergulhada em gordura, assim como se deve ter o estômago forrado.

Bifanas... fritas... em banha de porco...
Ao entrar no Beira Gare não esperamos nada de elaborado. Esperamos algo para nos encher a tripa. E tralha para empaturrar a cara não falta. Como é uso nestas casas, há uma enorme janela que revela tudo o que há para comer, pois aqui não se guardam segredos. Um grande fogão trabalha sem parar a fritar tudo o que se mexe e não se mexe. Coxas de frango, rissóis, croquetes, chamuças, panados de porco, ovo para sandes e bifanas. Tudo feito na hora. Para que não haja dúvidas acerca de um eventual conteúdo mais saudável da fritura, um cozinheiro usa um prato como medida para barrar com banha de porco as bifanas a fritar, assegurando menos anos de vida das artérias, mas a inequívoca certeza que aquilo que nos vai servir é uma bifana frita como deve ser. A nadar na própria gordura.

O Beira Gare não é diferente, pior ou melhor do que qualquer tasca junto a um terminal de transportes públicos. É onde os funcionários públicos e restante prole explorada emborcam à pressa um Sumol de ananás e uma sandes de panado na meia-hora que tem para ingerir alguma coisa. Mas precisamente por ser, e estar, junto a uma das mais movimentadas estações do país, é que destaco aqui o Beira Gare. É o supra sumo da comida que aconchega num relâmpago que rompe pelo quotidiano.

Seja porque tenho 10 horas de serviço na repartição a aturar chefes energúmenos ou utentes intoleráveis, seja porque sou um turista perdido numa cidade estranha num fim de tarde invernoso, o Beira Gare é um porto de abrigo onde o zumbido do dia-a-dia é amaciado em camados de gordura frita e diluído em cerveja acabada de espremer de um barril de alumínio.

Tudo se revela em duas trincadelas no misto estaladiço e oleoso de uma chamuça acabada de fritar ou no macio da textura pecaminosa de duas bifanas grossas e irregulares, culposamente amontoadas dentro de uma carcaça a pulsar banha derretida que escorre dos cantos da boca à primeira dentada. E as do Beira Gare são-no assim. Obscenamente amontoadas dentro da carcaça.

Aqui não achamos comida de autor nem se nos revela um orgasmo de sentidos. É onde encontramos aquele sofá usado mas confortável que nos envolve e nos acolhe com carinho antes de outra jornada.




Comentários

  1. Conheço bem esse local, é daqueles que quando mudarem o óleo as bifanas perdem a "piada".
    Um abraço
    Hugo

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    1. Também acho. E é de admirar como este restaurante ainda existe praticamente como era há 40 anos.

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  2. Para quem não sabe o Beira-Gare existe neste formato desde finais de 1976. Anteriormente o Beira-Gare funcionava como um restaurante tradicional da baixa lisboeta. Abria às 06:30 da manhã e fechava por volta da 01:00. Era famoso pelo bife à Beira-Gare (melhor do que o da Trindade, Portugália e afins), pela sua canja, pratos de bacalhau e o pudim flan. Às 06:30, quando abria, era "invadido" pelos notívagos de Lisboa, de cabarés e similares, que "jantavam" àquela hora antes de se deitarem. Ao almoço a clientela era variada, destacando-se os bancários. Havia. Tempo para almoçar. À tarde e ao jantar surgiam os intelectuais, os artistas e outras figuras conhecidas. No início dos anos 40 chamava-se La Gare, mudando o nome para Beira-Gare ainda nessa década. De 1941 a 1976 manteve a mesma direção. Foi trespassado em 1976 e passou a funcionar como cervejaria/tasca. Foi mais um dos restaurantes de Lisboa que, embora reaberto com outro nome, alterou a sua configuração e o tipo do seu serviço. Hoje já não se faz o bife à Beira-Gare como antigamente (o segredo do molho perdeu-se e só existe na memória dos antigos clientes). Perdeu-se na qualidade, ganhou-se na comida gordurosa.

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